Análise do jogo Tell Me Why
Nos últimos anos, o estúdio francês Dontnod Entertainment ficou conhecido por criar aventuras interativas com um elevado padrão de qualidade. Life is Strange, seu título mais famoso, encantou jogadores em todo o mundo com uma história envolvente e personagens carismáticos. O sucesso foi tão grande que a trama de Max e Chloe deu origem a uma franquia. Com Tell Me Why, a desenvolvedora buscou apresentar uma representatividade social ainda mais profunda do que aquela vista nos seus últimos trabalhos: Tyler Ronan, um dos protagonistas do game, é um homem transexual. A questão envolvendo a identidade de gênero não é o ponto central da narrativa, mas ela gera reflexos interessantes, principalmente quando Tyler interage com outros personagens. Cabe ressaltar também que esse é o primeiro jogo publicado por uma grande empresa em que temos um personagem transgênero jogável.
Antes de iniciar a aventura, uma mensagem destaca que Tell Me Why “foi desenvolvido com a orientação de defensores de culturas de saúde mental e de identidade de gênero.” Também é mencionado que o game apresenta situações fortes de violência familiar e trauma emocional, algo que fica bem claro logo no início, quando assistimos uma criança relatar ter assassinado a própria mãe, após ela ter tentado matá-la. Esse evento tem ligação direta com os jovens Tyler e Alyson, que são irmãos gêmeos e estão há dez anos sem se verem. Depois de todo esse tempo, os dois irão se reunir, pela primeira vez, para decidir questões relacionadas à venda da casa em que eles moraram durante boa parte da infância. A trama se passa em Delos Crossing, uma cidade fictícia no interior do estado do Alasca, o que justifica a bela e gélida ambientação.
Antes de serem separados, os irmãos tinham uma ligação muito forte e eram capazes de se comunicar por telepatia. Mesmo com o lapso temporal, eles conseguem retomar esse tipo de contato e ainda descobrem uma nova habilidade: a possibilidade de relembrar fatos do passado. Esse aspecto do jogo é muito legal, já que muitas das vezes as memórias de um irmão complementam o que foi lembrado pelo outro, mas existem também momentos em que eles possuem perspectivas diferentes sobre um fato ocorrido anos atrás, cabendo ao jogador fazer uma escolha entre as opções apresentadas. Sempre que existe um acontecimento para ser resgatado, vemos partículas douradas na tela e o controle começa a vibrar. Ao ativá-las, podemos mover a câmera e ver a lembrança de diversos ângulos (como se fosse um holograma) e, em alguns casos, precisamos seguir o deslocamento da memória para não perder o que está sendo mostrado.
Tyler demonstra estar muito empolgado para explorar a casa em que eles moraram, ao passo que Alyson parece querer evitar se lembrar do passado. No interior da residência, eles encontram várias coisas relacionadas às suas infâncias, o que inclui um livro de história escrito pelos próprios gêmeos e pela mãe deles, Mary-Ann. O Livro dos Goblins é um compêndio de contos de fadas, cujos personagens fazem analogia a Mary-Ann, Alyson, Tyler e outras pessoas que eles conheceram, o que inclui o grande vilão das histórias, o Caçador Colérico. Em momentos específicos da aventura, os contos do livro são utilizados para solucionar alguns dos puzzles existentes, ocasião em que é preciso ler as histórias para resolver os enigmas. Os puzzles aparecem com uma maior intensidade no terceiro e último capítulo, embora também existam desafios nas duas primeiras partes. Além de serem personagens dos contos, os Goblins também são pequenos bonecos que funcionam como colecionáveis e podem ser utilizados, na reta final do capítulo três, para revelar um segredo.
A história é bem desenvolvida e possui ótimas reviravoltas. Tal como já fez em games anteriores, a Dontnod construiu uma narrativa intimista, fazendo com que o jogador crie rapidamente empatia com os protagonistas. Durante a jogatina, assumimos o controle de Tyler e Alyson, momentos em que fica claro que os personagens possuem personalidades completamente diferentes. Enquanto exploramos os cenários, podemos interagir com objetos e conversar com outros personagens. Assim que realizamos uma escolha que é capaz de mudar a narrativa, um símbolo aparece no canto superior direito da tela; as decisões tomadas nos levam a múltiplos epílogos. Para desbloquear todas as conquistas, você precisará atingir um final que fortalece o vínculo entre os irmãos e outro que enfraquece essa relação, ou seja, será preciso jogar mais de uma vez. Nesse ponto, é interessante observar as variações de diálogo ao seguir um caminho diferente daquele traçado na primeira partida.
Em termos gráficos, houve uma clara evolução em relação a Life is Strange 2. Mesmo em cenários mais abertos, o jogo conta com ambientes bem construídos e detalhados. A moldagem dos personagens é muito bem feita, principalmente quando falamos dos dois protagonistas. Se tem um ponto em que o aspecto visual me impressionou foi durante as cenas de paisagens, o resultado é realmente de encher os olhos. A trilha sonora é ótima e certamente contribuiu positivamente para uma maior imersão. Destaco também o excelente trabalho da dublagem brasileira. Caso prefira, é possível jogar com o áudio original, basta fazer ajustes nas opções de idioma.
Lançado em 2020, Tell Me Why foi publicado pelo Xbox Game Studios e está disponível para Xbox One e Windows. Esta análise foi feita com base na versão do Xbox One.
Considerações finais
Vencedor do prêmio de jogo com impacto social no The Game Awards 2020, tendo também concorrido na categoria de melhor jogo independente, Tell Me Why segue o elevado padrão de qualidade da Dontnod em criar excelentes narrativas: o título oferece uma história bem construída, com ótimas reviravoltas e personagens marcantes e carismáticos. O fato de dar representatividade para pessoas trans certamente é um ponto que merece ser destacado, mas essa não é a única questão social abordada. O grande mérito do estúdio foi ter conseguido construir uma trama que engloba, de forma natural, uma seleção de temas relevantes, fazendo com que a experiência ao jogar seja proveitosa e permita que o jogador faça reflexões sobre aquilo com o qual está tendo contato.
Adotando um estilo de jogabilidade similar àquele visto em Life is Strange, os comandos são simples e bastante intuitivos. O jogador tem liberdade para andar pelos cenários e interagir com objetos que, eventualmente, podem revelar mais detalhes sobre o universo do game. O visual é bonito e demonstra que houve uma evolução gráfica quando comparado com os games que o precederam. Durante o tempo que joguei, presenciei a existência de alguns pequenos bugs, mas nada que interferisse profundamente na experiência que é proporcionada.
Nota
★★★★☆ – 4 – Ótimo
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